Quatro quarteirões, comércio intenso e espaço onde trabalham mais de 4 mil prostitutas: conheça a Rua Guaicurus


A rua mais icônica da Zona Boêmia da cidade fica no chamado ‘baixo centro’ de Belo Horizonte. Hotel da Rua Guaicurus, em BH. 2024
Jô Andrade/g1 Minas
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Hotel da Rua Guaicurus, em BH. 2024
Jô Andrade/g1 Minas
As ruas que compõem o famoso baixo centro de Belo Horizonte somam histórias importantes para a construção da cidade, que completou 126 anos há pouco mais de quatro meses. Uma em especial: a Guaicurus.
Os quatro quarteirões da via – criada pelo projeto da nova capital de Minas Gerais – recebeu o nome do povo indígena que vivia na região do Rio Paraguai e era conhecido pela habilidade com os cavalos.
A rua se tornou famosa em todo país graças à prostituta Hilda Furacão que, segundo o escritor Roberto Drumond que a imortalizou, trabalhava na região. Hoje, mais de quatro mil garotas de programa atuam nos 25 hotéis da região, segundo a Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig). (leia mais abaixo)
A vocação de zona boêmia da região vem desde a criação da cidade. No início do século XX, a Guaicurus era conhecida por ser uma região industrial. Pela manhã, os operários lotavam as fábricas e a estação ferroviária ficava movimentada. À noite, era a vez dos cabarés.
Segundo a professora e pesquisadora Luciana de Andrade, coautora do artigo “A territorialidade da prostituição em Belo Horizonte”, é difícil estabelecer uma data exata em que a Guaicurus ficou conhecida pela prostituição.
A falta de dados sobre o tema também está ligada à invisibilidade das trabalhadoras sexuais.
“A prostituição era tolerada, mas condenada. A polícia tentava evitar que as trabalhadoras saíssem para as ruas, então elas ficavam só nos cabarés. Não tem registro da chegada delas”, disse.
Luciana ainda relembra uma frase histórica do escritor José Nava:
“Neste bairro, pertinho da estação do trem de ferro, instalaram-se as mulheres de isca. Não haviam sido convocadas por Aarão Reis, mas se instalaram”.
A pesquisadora professora de Ciências Sociais da pós-graduação PUC Minas, Juliana Gonzaga Jayme, disse que a zona boêmia existe desde o começo do século XX, e uma das suas características mais fortes é estar próxima às rodoviárias e estações ferroviárias. Esse atributo ocorre não somente em Belo Horizonte, mas em outras capitais do país.
Segundo ela, o termo “zona” sempre foi usado para divisão de regionais, mas em locais que abrigam bordéis e casas de encontro, a palavra tomou um sentido pejorativo e passou a fazer alusão à desordem.
“O trabalho sexual ainda é muito estigmatizado. A Rua Guaicurus tem uma questão afetiva com a cidade, mas não deixa de ser estigmatizado. Por exemplo, a juventude da camada média não vai lá tomar uma cerveja, né? Ainda tem um estigma sim, mas a Rua está no imaginário de Belo Horizonte”, disse Juliana.
Coração da boêmia
Hotel Magnífico, Rua Guaicurus
Jô Andrade/g1 Minas
No coração da Rua Guaicurus, um dos prédios mais antigos e tradicionais da cidade guarda várias histórias das trabalhadoras do sexo. Com 54 quartos e corredores largos, o Hotel Magnífico foi construído antes mesmo da famosa rua ser conhecida como ponto de encontros.
O assoalho é antigo. As portas de madeira têm os nomes das trabalhadoras sexuais que ali estão hospedadas. A estrutura arquitetônica da década de 1930 chama a atenção.
Construído no ano de 1939 por um engenheiro italiano, o local funcionava, inicialmente, como uma pensão para os turistas e trabalhadores que vinham para se hospedar em Belo Horizonte. A região comercial era o atrativo principal, e até hoje muitas lojas funcionam em galpões, na área que fica embaixo dos hotéis.
Essa lógica de construção também foi pensada para que os clientes que iam até esses galpões atacadistas se hospedassem nos hotéis, fortalecendo a economia local. No entanto, em pouco mais de um ano o Magnífico quebrou. Na época, a Justiça ordenou que fossem recolhidas as louças e pratarias, para pagar as dívidas com os credores. Porém, nenhum objeto foi encontrado, tampouco a proprietária do estabelecimento.
Em 1940, a bisavó do estudante de cinema e diretor do Movimento Distrito Guaicurus, Flávio Dornas, assumiu o hotel. No mesmo ano, as prostitutas fizeram dali um local de trabalho. Na época, o Magnífico ressurgiu com as características de um cabaré, com direito a serviço de alimentação, bar e as “destemidas” performances artísticas.
Hoje, o hotel tem grande movimentação em qualquer horário do dia, mas no período da tarde percebe-se um fluxo maior de homens, — no conhecido “sobe e desce” — que se esbarram entre os corredores escuros com luzes vermelhas.
“Vovó era camareira no Grande Hotel e, por sugestão de amigos importantes, ela montou o hotel para as trabalhadoras [do sexo] no ano de 1940. Era uma outra forma de lidar com o trabalho sexual na Guaicurus, os hotéis tinham comida e bebida, cozinhas”, afirmou Flávio.
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Bar do Ponto
Ainda nos anos 1930, a efervescência da boêmia mineira passou pelo extinto Bar do Ponto, que ficava na Avenida Afonso Pena, esquina com as ruas Bahia e Tupis, bem embaixo onde se instalou, anos depois, o antigo Othon Palace. O tradicional hotel foi fechado em novembro de 2018.
Bar do Ponto, em Belo Horizonte
Nunes. C/Acervo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira
O nome fazia alusão à localização do bar, bem em frente ao ponto de parada de bondes, onde hoje funciona o Mercado das Flores, na esquina da Avenida Afonso Pena com Rua da Bahia. Ele esteve desativado por sete anos, mas foi reaberto em março de 2024, quando o Grupo Sesc ganhou a licitação para administrar o local pelos próximos três anos.
O Bar do Ponto fechou em 1939 e seus então frequentadores migraram para outras áreas do centro em busca de noites de boêmia regadas a cerveja, música e performances artísticas. Nesse contexto, a Rua Guaicurus mais uma vez ganhou força ao atrair esses clientes que ficaram “sem casa”.
‘Vida fácil’ ?
Rua Guaicurus, BH 2024
Jô Andrade/g1 Minas
Estima-se que, atualmente, existam mais de quatro mil prostitutas no comércio do sexo do hipercentro da capital, segundo dados da Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig).
Muitas destas mulheres saíram de seus estados em busca de uma oportunidade em Belo Horizonte.A profissão ainda é cercada de preconceitos, e as trabalhadoras lutam por respeito.
Enquanto parte da sociedade resume o trabalho das prostitutas a uma “vida fácil”, para quem está na linha de frente, a vivência é o oposto do que se pensa.
“A gente escuta com muita frequência que a trabalhadora optou por isso e se mantém nisso porque quer, mas a grande maioria vem por uma fragilidade social. Elas são arrimo de família”, contou Flávio Dornas.
No Brasil, a prostituição não é ilegal. Ela é uma profissão reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupação (CBO). O desafio diário destas mulheres está, muitas vezes, em manter seus espaços na cidade, já que participaram ativamente da construção econômica de Belo Horizonte.
A coordenadora do Clã das Lobas, entidade que defende a categoria, Jade, de 55 anos, foi trabalhadora sexual por 23 anos. Para ela, existe um sistema patriarcal e machista que marginaliza as garotas de programa empurrado-as para a informalidade e a invisibilidade.
“Muita gente pergunta se ainda existem gigolôs. Gigolô, para mim, é a família. Quando descobrem que a gente é trabalhadora sexual, nos exploram. Então, nossa luta é levantar bandeiras para que o trabalho seja reconhecido, a ponto de termos uma legislação que nos proteja”, afirmou Jade ao g1.
Jade, coordenadora do Clã das Lobas
Jô Andrade/g1 Minas
Ceasa
Como toda grande cidade, a zona de prostituição de Belo Horizonte está diretamente ligada ao crescimento do comércio, já que abriga lojas de diferentes características, desde a venda de aparelhos eletrônico até farmácias.
Mas a pesquisadora Luciana Teixeira disse que o baixo centro é uma região bem diferente do restante da Centro-Sul.
“Diferentemente da parte alta do Centro, que foi se consolidando com a classe média, a zona foi ocupar esse lugar mais comercial, industrial. E depois da inauguração da a estação ferroviária, houve grande circulação de gente que chegava na cidade”, contou.
Nessa fase de crescimento e desenvolvimento econômico comercial, até mesmo a Central de Abastecimento de Minas Gerais (CeasaMinas) teve participação importante na Rua Guaicurus. Na década de 1960 ainda não existia o nome Ceasa, mas os atacadistas se dividiam na extensão de toda a rua.
Já no ano de 1983, uma forte chuva provocou uma cheia no Ribeirão Arrudas, que inundou as ruas do hipercentro e causou prejuízos aos comerciantes locais da Guaicurus.
Flávio Dornas relembrou que a enchente foi um dos motivos para a saída da Ceasa, que hoje está em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. (veja abaixo a reportagem da TV Globo, no ano de 1983).
“Foram muitas perdas naquela época”.
Enchente e alagamento na Rua Guaicurus, em BH, no ano de 1983
Economia
O comércio da região da Guaicurus hoje também é sustentado pelas trabalhadoras do sexo que atuam na região. Elas representam uma fatia da economia fundamental, não só para a rua, mas também para toda a cidade.
“As trabalhadoras fazem render tudo aquilo, desde o salão de beleza, ao lanche, até as farmácias. Existe um circuito econômico muito forte. É uma rua como qualquer outra do Centro da cidade, mas muito mais viva. E nunca perdeu essa vitalidade”, disse a pesquisadora, Juliana Gonzaga Jayme
Rua Guaicurus, BH. 2024
Jô Andrade/g1 Minas
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