Como a mudança climática altera o ciclo global da água


Inundações e secas pelo mundo afora estão conectadas pelo ciclo hidrológico. Porém a circulação da água doce, que mantém toda a vida na Terra, encontra-se sob ameaça, em grande parte devido à ação humana. Rodoviária de Porto Alegre ficou totalmente alagada com enchente neste sábado (4)
Jorge Rosa/Arquivo pessoal
O processo pelo qual a água se move através do solo, mares e atmosfera da Terra denomina-se ciclo hidrológico. Seja na forma gasosa, líquida ou sólida, a água é parte do ciclo natural que reabastece continuamente o suprimento necessário à sobrevivência dos humanos e de todos os demais seres vivos.
Dessa reserva finita, 97% é salgada, e o 3% restante, de água doce, serve para beber, banhar-se, irrigar plantações, entre inúmeros outros usos. No entanto, a maior parte está fora de alcance, presa em geleiras ou no subsolo profundo, em aquíferos. Assim, apenas cerca de 1% das reservas hídricas totais está disponível para manter toda a vida no planeta.
Como funciona o ciclo hidrológico?
A água contida em lagos, rios, oceanos e mares é constantemente aquecida pelo sol. À medida que as superfícies se aquecem, ela se transforma em vapor, escapando para a atmosfera, num processo que o vento acelera. As plantas igualmente liberam água pelos poros das folhas e caules, por transpiração.
Uma vez no ar, o vapor esfria e passa a se condensar em torno de minúsculas partículas suspensas de poeira, fumaça e outros poluentes, formando nuvens. Estas se movem em torno do planeta em “rios atmosféricos”, uma característica crucial do ciclo global que alimenta os sistemas meteorológicos.
A partir de um certo volume, as gotículas suspensas nas nuvens se fundem, formando gotas maiores. Quando estão pesadas demais, caem ao chão em forma de chuva, neve ou granizo, dependendo da temperatura do ar. Essa precipitação reabastece os rios, lagos e outros corpos hídricos, e o ciclo recomeça.
A água também se infiltra no solo por influência da gravidade e pressão, onde fica coletada em reservatórios e aquíferos subterrâneos. Ela continua penetrando cada vez mais fundo, às vezes ao longo de milhares de anos, antes de escoar para um corpo hídrico, retornando ao ciclo.
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Como a mudança climática está perturbando o ciclo hidrológico?
Pesquisas recentes demonstram que em certas regiões o ciclo da água está se acelerando, em reação às mudanças climáticas ditadas pela ação humana. Temperaturas mais altas aquecem a atmosfera inferior, intensificando a evaporação, injetando mais vapor no ar e aumentando a probabilidade de precipitação pluvial, muitas vezes na forma de tempestades intensas e imprevisíveis.
Em contrapartida, o aumento da evaporação também pode agravar a situação em áreas propensas a secas, pelo fato de o líquido escapar para a atmosfera em vez de permanecer no solo, onde é necessário.
Cientistas do Instituto de Ciências Marinhas de Barcelona, Espanha, demonstraram como a mudança climática está acelerando o ciclo através de uma análise da salinidade da superfície oceânica – a qual aumenta à medida que a evaporação se intensifica.
“A aceleração do ciclo hidrológico tem implicações tanto para o oceano, como para o continente, onde as tempestades podem se tornar cada vez mais intensas”, advertiu a principal autora do estudo, Estrella Olmedo, num comunicado de imprensa.
“Essa maior quantidade de água circulando na atmosfera também explicaria o incremento das precipitações detectado em algumas áreas polares, onde o fato de estar chovendo em vez de nevar vem acelerando o derretimento.”
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Como combater a ruptura do ciclo hidrológico?
Está claro que não será fácil cortar as emissões carbônicas dos combustíveis fósseis, e que avanços perceptíveis não virão rapidamente. Mas são possíveis algumas medidas imediatas para estabilizar o ciclo hidrológico.
Restaurar as zonas úmidas e repensar a agricultura, incorporando técnicas de cultivo que conservem a água e fortaleçam o solo, pode ajudar a manter e restaurar a capacidade do solo de absorver, purificar e armazenar água.
Restabelecer um estado mais natural dos rios e hidrovias é outro meio de reverter parte dos danos. Os projetos para remover represas e açudes obsoletos na Europa e outras regiões são um grande passo para a restauração das várzeas, que absorvem água e contribuem para abastecer as reservas subterrâneas.
As cidades podem igualmente reforçar o ciclo hidrológico de modo natural, tornando as superfícies urbanas mais permeáveis. As superfícies porosas das “cidades-esponjas” permitem que água se infiltre por ruas, praças e outros espaços, em vez de ser canalizada para fora. Assim, criam-se reservas para os períodos de seca, ao mesmo tempo que se combatem as inundações.
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O que está em jogo?
Nos próximos anos, as cidades e províncias no divisor de águas das cordilheiras de Hindu Kush e Himalaia, na Ásia Central, talvez precisem passar a adotar soluções desse tipo. Para obter água doce, bilhões de habitantes locais dependem do acúmulo sazonal de neve firme e gelo nas montanhas e geleiras.
Contudo, um terço dos grandes campos glaciais da região devem desaparecer até o fim do século, de acordo com um estudo de 2019, do Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas, no Nepal. E isso, só se a humanidade conseguir manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC em relação à era pré-industrial.
Sem um fluxo consistente de água de degelo, a escassez hídrica se agravará para bilhões de indivíduos. Embora as reservas subterrâneas sejam capazes de compensar parte da escassez, também elas deverão diminuir nas décadas futuras, devido à mudança do clima global.
A agricultura já se tornou mais difícil em regiões como a de Ladakh, administrada pela Índia, na cordilheira do Hindu Kush-Himalaia, onde nas últimas décadas se registrou queda da precipitação de neve e recuo das geleiras.
“Essa é a crise de que não se ouve falar”, comenta Philippus Wester Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas. “Os impactos para a população de uma das regiões montanhosas mais frágeis e expostas a ameaças do mundo, irão desde um aumento dos eventos meteorológicos extremos, à redução das safras e maior frequência de desastres.”
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