Agência de Águas tem gargalos para enfrentar mudanças climáticas e regular saneamento

A foto mostra enchentes no Rio Acre, em Rio Branco

Cheias no Rio Acre atingem a capital Rio Branco – Divulgação/Governo do Acre

Órgão é vinculado ao Ministério de Integração, não ao de Meio Ambiente, e tem pouco poder sobre estados
Os efeitos das mudanças climáticas e as novas competências sobre saneamento básico ampliaram o escopo de atuação da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico).
No entanto, especialistas apontam para gargalos e contradições no órgão, que podem dificultar sua operação diante desses dois cenários.
Citam, por exemplo, a migração da agência do Ministério de Meio Ambiente para o Ministério da Infraestrutura, enquanto a competência pelo Sistema Nacional de Recursos Hídricos ficou no primeiro.
Também é mencionado o fato de que ela incorporou as competências ligadas a saneamento, mas o setor segue majoritariamente sob controle dos estados e municípios.
Procurada pela Folha, a ANA não respondeu.
O Brasil viveu, nos últimos anos, períodos de contraste extremo: de chuvas torrenciais e enchentes históricas concomitantes a recordes de baixa vazão de rios, resultado das secas.
No início deste ano, por exemplo, Acre e Roraima, ambos na Amazônia, passaram, ao mesmo tempo, pelos dois lados dessa realidade.
No primeiro, ao sul da linha do Equador, enchentes provocaram pelo menos quatro mortes, deixaram 19 de 22 municípios em estado de emergência (quase 90% do território) e atingiram mais de 120 mil pessoas, no que a Defesa Civil estadual considerou o maior desastre ambiental da história do do estado.
Enquanto tudo isso acontecia, ao norte da linha que divide os hemisférios, as secas provocaram queimadas que cobriram de fumaça o céu da capital Boa Vista.
O hidrólogo Jerson Kelman, primeiro presidente da ANA, ele diz que a agência não pode ser responsabilizada pelas mudanças climáticas, mas tem a obrigação de regular as vazões e contenções de água em reservatórios para que não haja falta durante a seca, nem enchentes durante as chuvas.
“A ANA foi criada para organizar o sistema nacional de recursos hídricos e dar segurança jurídica e legal a quem usa e precisa de água: a irrigação, a indústria e o abastecimento de cidades”, diz.
“Não se controla o fenômeno, mas pode se adaptar. Segurar água quando ela está sobrando e entrando na casa das pessoas e, quando não estiver chovendo, você libera a água para as pessoas não ficarem com sede, nem a produção agrícola morrer, nem faltar energia”, afirma.
Kelman lembra que uma das atribuições da ANA seria implementar e gerir o sistema nacional de recursos hídricos, mas diz que esse processo nunca foi completado. Cita como empecilho a falta de integração entre bases de dados, inclusive de estados e municípios, e também a necessidade de a agência se capacitar melhor.
Malu Ribeiro, da ONG (organização não governamental) SOS Amazônia, critica o fato de o Congresso, no início de 2023, ter vinculado a ANA ao Ministério da Integração, e não ao do Meio Ambiente, enquanto o sistema nacional de recursos hídricos e a política de recursos hídricos ficaram sob guarda-chuva da segunda pasta.
“Isso enfraquece a agência e o próprio entendimento do que é segurança hídrica. Não é uma questão de infraestrutura. Segurança hídrica pressupõe soluções baseadas na natureza, adaptação [climática] e mitigação”, diz.
Desde 2020, com o novo Marco do Saneamento, a ANA passou a ter também parcela de competência pelo saneamento básico. O setor segue regulado pelos estados, mas a agência edita suas diretrizes gerais.
O cálculo, por exemplo, da tarifa de saneamento ou a exigência na qualidade do serviço prestado segue a cargo regional. A ANA, por sua vez, cria balizas e parâmetros para o setor e pode oferecer incentivos fiscais a quem cumprir as normas.
Atualmente, cada estado ou município define sua política de saneamento, seus preços, suas regras e se ele é feito por empresas estatais ou privadas.
Há, porém, uma enorme desigualdade na qualidade do serviço de saneamento no Brasil.
Cruzamento de dados do Censo e da ONU (Organização das Nações Unidas) mostra, por exemplo, que Rondônia tem 39,4% de seus moradores atendidos por um serviço adequado, parâmetro comparável a Djibouti, país na região do Chifre, na África.
Já São Paulo, na outra ponta da tabela, com 94,5% da população com esgoto adequado, tem níveis comparáveis aos da Suécia.
“A nossa regulação é precária, de baixa qualidade e muito fragmentada. Nós precisamos melhorar a nossa regulação uniformizada e para isso contamos com a capacidade da ANA de produzir essas normas de referência”, diz Fernando Vernalha, advogado especialista em saneamento e infraestrutura e sócio do escritório Vernalha Pereira.
Para ele, após patinar no início, agora as diretrizes da agência têm surtido efeito no setor, que vem atendendo aos seus critérios, em busca dos benefícios fiscais.
“A questão é que a gente precisa avançar muito mais, tem muito mais regulação a ser desenvolvida e editada pela ANA”, completa.
Angelo Lima, secretário do Observatório da Água, entende ainda que as novas competências também precisam vir acompanhadas de recursos, não só para a agência, mas para o setor em geral, seja por meio de aportes públicos ou privados, visando melhorar a qualidade do serviço de saneamento brasileiro.
“O novo marco do saneamento, na realidade, não trouxe segurança para, de fato, aplicar recursos no saneamento. É preciso que se invista na gestão das águas e do saneamento no Brasil”, afirma.
Desde que incorporou as novas atribuições, a agência até ganhou funcionários (passou de 376 em 2019 para 423 em 2024).
O orçamento destinado a ela, por outro lado, considerando apenas os recursos que ela pode investir, não cresceu. Era de R$ 547,2 milhões no 2019 (valor já corrigido pela inflação) e hoje é de R$ 505,5 milhões.
Malu Ribeiro afirma ainda que o perigo atual é ter uma agência inflada, sem capacidade para nem gerir os recursos hídricos, nem o saneamento.
“É o próprio enfraquecimento da Agência Nacional de Águas para a gestão da água, para que ela foi criada. Ela passa a receber essa atribuição do saneamento, com aumento de competências e atribuições, sem um aumento de recursos”, completa.
RAIO-X DA ANA
O que é: autarquia vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, com sede em Brasília, que é responsável por implementar a gestão dos recursos hídricos, de forma compartilhada com outras pastas, estados e municípios.
Atribuições: Regula o acesso e o uso dos recursos hídricos de domínio da União (aqueles que fazem fronteiras com outros países ou passam por mais de um estado); regula os serviços públicos de irrigação (se em regime de concessão) e adução; fiscaliza o cumprimento de normas; e fiscaliza a segurança de barragens outorgadas por ela. Com o novo marco legal do saneamento básico, passou a editar normas para a regulação dos serviços de saneamento básico (incluindo abastecimento, esgotamento, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais).
Criação: 2000, durante o governo Fernando Henrique Cardoso
Orçamento*: R$ 505,5 milhões (2024)
Servidores: 423
*Não considera emendas e verba contingenciada, apenas recursos aplicáveis
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